Manhã fria de rigoroso
inverno. Quitéria, menina de oito anos de idade, abandonada pelos pais,
ignorada pela sociedade, atormentada pelo frio e pela fome, mendigava à porta
de tradicional colégio de aristocrático bairro da cidade.
Poucos notavam-lhe a
presença, ninguém se compadecia de sua desventura.
Bem nutrido, ricas
roupas de lã, acompanhado por um senhor de semblante austero, Audálio desceu de
luxuoso carro importado, num gritante contraste com a pobre aparência da
magricela Quitéria.
Estavam ali, frente a
frente, a opulência e a miséria.
Cruzaram-se os olhares
de Audálio e de Quitéria que, triste, mãos estendidas, suplicou:
- Piedade, tenho fome
e frio!
Com um gesto brusco, o
Sr. Alcântara impediu Audálio de entregar à faminta o seu lanche.
- Pai, eu estou
alimentado, ela tem fome. Deixe-me socorrê-la.
- Não. Não nos devemos
imiscuir com esse tipo de gente. A responsabilidade é do governo, para isso
pago pesados impostos.
- Ela tem frio,
permita-me ao menos cobri-la com meu casaco.
- Nunca! Seu casaco custou-me
trezentos e cinqüenta reais! Quer jogá-lo fora? Quer porventura arruinar-me com
suas penas desmedidas? Ademais, sem ele, você poderia apanhar um resfriado.
Entre imediatamente.
Após reiteradas
recomendações ao diretor da escola para não permitir a Audálio transpor o
portão do colégio em momento algum, Alcântara saiu em disparada, indiferente ao
sofrimento da menina, preocupado somente com os milhões que lucraria no negócio
a ser consumado naquela manhã.
Audálio, porém, armou
um plano para fazer chegar sua merenda às mãos de Quitéria. A coleguinha Júlia
seria a intermediária; o porteiro, o cúmplice. Tudo combinado, o esquema foi
posto em execução.
Estava escrito, o
infortúnio visitaria a alma do pequeno Audálio. Na hora do recreio, duas
notícias vieram magoar aquele coração sensível. Quitéria, resignadamente,
partira do mundo material antes de receber o alimento salvador; seu pai,
vitimado por acidente de trânsito, falecera blasfemando em lastimoso estado de
revolta.
Passados alguns meses,
certa noite, Audálio sonhou que entrava no paraíso. Recebido por Quitéria que
parecia radiante, emoldurada por suave iuz azulada, comentou:
- Fico alegre por
vê-la sem as marcas da adversidade, tão bela, tão feliz, contudo, preocupo-me
com meu pai. Onde e como estará seu espírito?
- Meu bom amigo, por
isso mesmo, você foi chamado a vir ao meu encontro. Seu pai padece no umbroso
vale dos desesperados a dor daqueles que se descuraram dos deveres cristãos,
levado pela vaidade e ambição sem limite.
- O que posso fazer
para salvá-lo?
- Precisamos ajudá-lo.
Pedi e foi-me concedida a oportunidade de, em breve, reencarnar. Do nosso
consórcio, nascerá o Sr. Alcântara, filho que amaremos e a quem conduziremos
pela trilha do reajustamento espiritual. Aceita?
Sim, tudo farei por meu
pai. Além do mais, unir-me a você pelo matrimônio é uma dádiva divina! Amei-a à
primeira vista, parece inexplicável!
Oh! Que tolice achar
inexplicável o seu súbito sentimento! É muito natural que tenha ocorrido, pois,
há séculos, estamos ligados por um afeto fraternal, em múltiplas reencarnações.
Na verdade, houve apenas um reencontro.
Audálio despertou em
pranto.
Não se lembrava
detalhadamente do sonho; sabia, entretanto, que se encontrara com a pedinte da
porta do colégio. que seu pai recebera o perdão incondicional daquela menina
que, na Terra, vira apenas uma vez e, mesmo assim, a amou profundamente e que
um pacto de amor havia sido selado sob a égide do Senhor.
Ela voltaria, ele
esperaria.
Assim, Audálio sentia
manifestar-se a sabedoria e bondade de Deus.
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Autor Desconhecido
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