Retomamos à Estação do Adeus, onde Silene estava sendo velada. Um
caía ali, outro acolá, um gritava, puxando os cabelos; e ainda os sussurros e
comentários. Silene estava grávida e fora assassinada pelo marido ciumento.
Chegamos com dificuldade, porque os espíritos brincalhões, os
zombeteiros, tudo faziam para que as pessoas ali presentes praticassem atos
daquela natureza. E como se divertiam! Os encarregados das capelas tentavam
ajudar Silene que, junto ao espírito que jazia em seu ventre, não conseguia
libertar-se do corpo físico, tal a violência de que fora vítima. Juntamo-nos
aos Samaritanos e oramos sem parar. Mas aquela hora, que deveria ser a hora do
adeus, estava-se tornando um verdadeiro suplício. De um lado, médicos
espirituais, socorristas e os amigos espirituais de Silene, todos oravam, procurando
ajudá-la, assim como ao seu filho e, na parte física, os curiosos, que tinham
ido àquele local mais para comentar o fato narrado pelos jornais. Ninguém fazia
uma oração, só as velas e as flores ornavam aquela capela. Os gritos de dor e
de vingança eram uma barreira para os seus amigos espirituais.
Silene, com o espírito ainda se debatendo em seu ventre, não conseguia
desprender-se, tal a perturbação que sofria. Nisso, entrou o doutor Terêncio
Sabóia, pedindo que todos se pusessem em oração, pois iria tentar retirar o
espírito do ventre de Silene. Todos nós, cientes da nossa responsabilidade, isolamos
tanto o ambiente, que nem o cantar dos pássaros era ouvido. Ele e a enfermeira
Marinette retiraram aquele perispírito com forma diminuta. Silene adormeceu, o
seu laço fluídico foi desamarrado e ela foi saindo, deslizando como se fosse
uma bailarina. No instante em que Silene se desprendeu, seu corpo físico deu um
estremecimento, percebido por alguns que choravam desesperados diante do
caixão. Eles se assustaram tanto, pensando que Silene estivesse viva, que saíram
correndo. E o tumulto se fez naquela capela. Falavam que ela tentara
levantar-se, abrira os olhos, que levantara os braços. A família, apavorada,
chamou um médico e ele sorriu, pois o corpo já estava rígido e os olhos da alma
haviam perdido o brilho da vida física. Se ele fosse vidente, teria visto os
fios, que levam o brilho aos olhos, sendo desligados graças à luta dos
espíritos que nas capelas trabalham. Depois que o médico deu Silene por
"morta", quase ninguém quis ficar ao lado do corpo, principalmente
aqueles que o viram estremecer.
Pensei: como seria bom se ela sentasse no caixão e falasse:
Calem a boca, seus fofoqueiros; e voltasse a dormir o sono da vida
Já que a morte do corpo físico ronda aqueles que distantes se encontram das
coisas espirituais. Os gritos diminuíram, mas de vez em quando caía pelo chão.
Vendo que ninguém fazia uma prece, cheguei perto de Onorina, uma
apreciadora do Espiritismo, como gosta de dizer.
— Onorina... — chamei.
Ela olhou para os lados, segurou o peito e pensou: meu Deus, me
ajude, acho que a "defunta" está querendo entrar no meu corpo! Não
deixe, por favor, meu Deus!
Falei ao seu ouvido:
__ Onorina, eu não sou a Silene, sou um amigo espiritual.
Quero pedir-lhe um favor: ore pela Silene, ela está precisando.
A mulher me pareceu um
arco-íris; ficou com tanto medo que o seu rosto adquiriu várias cores.
__ Meu Deus! Meu Deus! Pai nosso que estais no céu...
E assim Onorina orava, orava, orava, sem parar. Ninguém mais aguentava,
pois ela não parava, com medo de ouvir novamente aquela voz nos seus ouvidos. A
filha bateu em seu braço:
— Mãe, pare, todos estão cansados.
Ela nem respondeu, continuou orando o que sabia e o que não sabia.
Tudo ela estava fazendo, porque "a voz" tinha-lhe pedido.
— Onorina, falou uma amiga, o que está acontecendo? Ela, mais que
depressa, respondeu:
— Nada.
— Sei que você é médium, fale para nós o que viu.
— Não vi nada e nem quero ver. Senhor Jesus Cristo, ajude esta
pobre mulher que precisa tanto do Senhor.
Saí de perto para não rir. Aqueles que gritaram e desmaiaram foram-se
retirando, correndo das ladainhas de Onorina. Aí mesmo é que ela não parou
mais. Foi quando Enrico sussurrou em seu ouvido:
— Que Deus a abençoe pela ajuda que está prestando a todos nós e
que Jesus seja louvado hoje e sempre.
— Jesus seja louvado hoje e sempre, repetiu Onorina.
Repetia e repetia a frase de Enrico. A sala estava quase vazia, pois
na hora do disse-que-disse todos gostam, mas na hora de louvar a Deus poucos
ficam. Nisso, o espírito encarregado da capela, aproveitando a mediunidade de
Onorina, fez uma oração que deixou a todos boquiabertos, pois Onorina era semi-analfabeta:
—Pai amado, ouvi-me. Bem sabeis que esta vida é passageira e na
Terra estamos para evoluir. Ajudai-nos, dai-nos força para aceitarmos a
separação de Silene. Sabemos que jamais a esqueceremos. Um vazio se faz entre
nós, pois parte uma irmã, uma filha, uma amiga. Perdoai nossa fraqueza e ajudai-nos
a compreender a "morte", que ela é necessária e que a alma é levada
para a morada espiritual. Tirai dos nossos corações o vazio e colocai neles a
certeza de que nos reencontraremos além da matéria. Dai-nos esperança, fé e amor,
e à nossa irmã, concedei a saúde espiritual e a paz.
Quem já estava saindo, fugindo das ladainhas, voltou para ouvir a
oração feita por Onorina. Agora, em vez dos gritos, eram os elogios e Onorina,
toda feliz, dizia:
— Obrigada, obrigada...
Em momento algum ela disse que não havia sido ela e sim um espírito.
Errado isso? Claro que não. Se ela revelasse para aquele povo sem fé que eram
de um espírito as suas palavras, todos iriam rir. Mas ela estava feliz, algo
estranho havia-lhe acontecido.
Olhei a veste de carne, o vestido que servia o perispírito de Silene,
e vi o seu duplo apagando-se, quase sem vida, juntando-se ao corpo, sentindo-se
abandonado pelo espírito. Como pode um amontoado de carne, vísceras, ossos e
nervos ser cultuado pelos materialistas que julgam que nada existe além do
corpo físico? Será que eles nunca buscam a força que põe essa máquina a funcionar?
Que guando a força — que é o espírito — está-se desligando do corpo físico,
este vai enfraquecendo? Observei Silene, uma bela mulher, já ficando feia, pois
o que embeleza a matéria é o espírito. E o dela, por mercê de Deus, já estava deitado
no Hospital de Lucas, que paira sobre aquela Estação do Adeus. Não poderia
deixar de dar um beijo em Onorina. Quando me aproximei, ela cerrou os olhos e
me viu com mais nitidez.
Arrepiou-se toda e falou:
— Valha-me Deus!
Beijei seu rosto com carinho e falei:
— Eu amo você.
Já sem medo, ela respondeu:
— Eu também, meu filho — e começou a chorar.
Onorina chorou não de medo, mas de alegria, porque só ela sabia o
que havia acontecido ali, na capela. Enrico me esperava junto aos outros e logo
andávamos pelas alamedas do chamado cemitério. Com tristeza constatamos o
abandono de muitos túmulos. Somente aqueles que a família paga se mantêm
limpos, mas o que devia ser uma obrigação social, hoje é um comércio sujo,
porque ultraja viúvas, filhos, mães e pais desesperados.
— Até quando? perguntei a Enrico. Até quando assistiremos ao que
está acontecendo hoje?
Alguns espíritos, sentados sobre seus túmulos, relembravam a época
em que ainda estavam presos a seus corpos. Outros lutavam para deles se
libertar. Não posso dizer que foi um passeio agradável. Percorrendo as alamedas
do cemitério, ou Estação do Adeus, constatamos que o encarnado não aprecia visitá-lo;
seu desejo é ignorá-lo, porque ele faz com que o homem pare um pouco para
indagar: para onde vamos? ou, não somos nada, tudo termina aqui? Agora,
se o Espiritismo fosse ensinado nas escolas, tudo seria tão diferente! Desde
criança o homem procuraria respeitar seu corpo físico para não ferir seu espírito.
Luiz Sérgio
NA HORA DO ADEUS
Psicografía: Irene Pacheco Machado
2a Edição • 1997
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