Durante
o caminho, Enrico relatou o que aconteceu com Anita e Laerte:
—
Lutaram para ter um filho; Anita fez vários tratamentos e quando engravidou foi
uma vitória, esperando a filha com amor e deslumbramento. A menina estudou nos
melhores colégios, era a filha do coração, inteligente e brilhante como seu
próprio nome: Clara. Entretanto, Clara veio a desencarnar quando estava com o
noivo, em um desastre automobilístico. Ele corria, dando gostosas gargalhadas,
e o carro, que não foi feito para voar por não possuir asas, partiu-se ao meio.
—
E os pais? perguntei.
—
Logo conheceremos o seu sofrimento.
Chegamos
à bela casa onde a tragédia havia feito morada.
Fotos
de Clara enfeitavam desde a entrada até a cozinha. Encontramos Anita deitada,
com um livro de orações na mão, estática, indiferente a tudo. Laerte não
demorou a chegar. Beijou a esposa e ambos choraram. Depois, ele tentou
consolá-la, mas ela nada aceitava. Sua revolta era tamanha que, para ela, Deus
não existia, ou, se existia, era indiferente à dor de um filho Seu. Aproximei-me
de Anita e orei em silêncio, pensando: só a prece pode aplacar a dor da
separação. Aquele coração de mãe era uma ferida aberta pela saudade.
—
Querida, vamos viajar para a Europa, você gosta tanto de obras de arte, sugeriu
o marido.
—
A dor que sentimos está dentro de nós e não nos lugares onde vivemos.
—
Mas esta casa está repleta de lembranças, o sorriso de Clara, os seus passos,
tudo ainda soa em nossos ouvidos e, por mais que esperemos, ela não surgirá
como fazia antes. Longe daqui será mais fácil viver.
Anita,
olhando para os lados, propôs:
—
Laerte, vamos nos suicidar? Assim ficaremos juntos dela.
—Querida,
não é fácil tirar a própria vida e depois, para mim, é um ato de covardia.
Anita
começou a gritar, gritar, numa crise de desespero.
Adentrou
o recinto uma enfermeira, que lhe aplicou uma injeção. Laerte saiu, cabisbaixo;
encontrava-se cansado. Nós o seguimos e logo estava na porta de um dos quartos.
Bateu, perguntando:
—
Posso entrar, Clarinha? Filhinha, responda logo, quero dar-lhe um beijo.
Como
a filha não mais estava ali para responder, foi abrindo devagar a porta. O
quarto estava exatamente como Clara o havia deixado. Ele se sentou em uma
cadeira à frente da escrivaninha e chorou. Depois saiu, dirigindo-se à cozinha.
E nós atrás dele.
—
Geni, boa-noite!
—
Boa-noite, doutor Laerte. Que Deus o abençoe, respondeu a velha serviçal.
—
Geni, está na hora de levar a refeição a Clara, ela já está com fome.
—
Sim, senhor.
Quando
ele já ia saindo, Geni falou:
—
Doutor Laerte, por que o senhor não busca no Espiritismo o consolo? Só ele pode
explicar o que aconteceu a Clara.
—
Por favor, Geni, não é a dor que vai me levar a um lugar de ignorantes e
mentirosos.
—
Olha, doutor, já vi muitos pais serem por ele consolados.
Será
que a seu consolo não está em uma casa de gente simples, mas não ignorante nem
mentirosa?
—
Geni, proíbo-lhe de falar de Espiritismo nesta casa. Espiritismo é coisa do
demônio, e depois, só os ignorantes o procuram.
—
Tá bem, doutor Laerte, desculpe-me, só queria ajudar. No Espiritismo eles iriam
ensiná-lo que em vez do senhor dar comida para sua filha, que já desencarnou,
seria melhor levar para quem está morrendo de fome. O senhor já viu quantos famintos
perambulam pelas ruas da cidade?
—Geni,
se você não parar de falar em Espiritismo, eu lhe dou as contas. Minha filha
não morreu, ela está lá no quarto.
Não
demore, ela já deve estar com fome. Não se esqueça do suco nem da sobremesa.
Coloque na bandeja uma rosa vermelha, símbolo do nosso amor.
—
Sim, senhor, concordou Geni.
Quando
Laerte saiu, ela comentou com Marli, a copeira:
—
Estão ficando loucos e nem percebem, não sei como ajudá-los.
—
Espere que saiam, chame os espíritos e faça uma sessão aqui na cozinha.
—
Marli, a Doutrina Espírita que eu estudo não força ninguém a aceitá-la.
—
Sabe, Geni, para mim tudo é igual, desde que mexa com os mortos.
Geni
alisou os cabelos de Marli e falou:
—
Minha querida, você nunca vai entender a minha religião, principalmente com as
minhas pobres palavras. Se você desejar conhecê-la é só buscá-la nos livros
doutrinários, eles são muito ricos em ensinamentos!
Marli
respondeu, com desdém:
—
Detesto ler, gosto mesmo é de livrinho de amor.
Geni
nada mais disse, logo levaria para o quarto de Clara uma farta refeição.
— Enrico, como fica Clara na espiritualidade,
diante de tudo isso?
—
Vamos, Sérgio, até a Colônia onde ela se encontra. Mas antes façamos uma prece
para Laerte e Anita:
Ainda
que no caminho da vida o socorro e a alegria lhes faltem, busquem Jesus. Ainda
que considerem findas as suas esperanças, busquem Jesus. Sabem que o desespero
lhes banha as almas, mesmo assim busquem Jesus. Ainda que a porta deste lar
esteja fechada para o socorro, que Ele, Jesus, com o Seu raio de luz e amor a
todos desta casa proteja, hoje e sempre.
o O o
No
hospital em que Clara ainda convalescia, procuramos nossa irmã Dorotéia,
encarregada da ala onde Clara se recuperava. Dorotéia nos colocou a par do seu
estado e contou da sua revolta por não querer aceitar o tratamento. Com a devida
permissão, fomos em direção ao quarto de Clara.
Quando
entramos, vimos uma mulher belíssima, cabelos até a cintura, loiros e sedosos,
os olhos verdes, lindos como uma esmeralda. Sorri-lhe:
—
Como vai, Clara?
—
Péssima. Estou louca para levantar-me desta cama, mas sinto náuseas; é como se
alguém estivesse forçando-me a comer sem estar com fome, pois acabei de
acordar. Quero chegar até a janela e ver o jardim, que dizem ser lindo, mas algo
me detém, como que desejando colocar um peso nos meus pés. Quero mudar de
roupa, mas não consigo, uma força desconhecida me faz ficar com este vestido
com o qual me enterraram.
De
repente, começou a gritar: "papai, mamãe, Eduardo!..."
Enrico pousou a mão em sua testa e orou o Salmo
CXLIII 3, versículos l e 2:
Bendito
seja o Senhor, minha rocha, que adestra as minhas mãos para a batalha, e os
meus dedos para a guerra; minha misericórdia e minha cidadela, meu presídio e
meu libertador, meu escudo e meu refúgio, que me submete os povos.
3
N.E. — Em algumas Bíblias, CXLIV 27
Clara
aquietou-se e olhou Enrico com imenso carinho, agradecida pelo alívio que por
momentos tivera.
—
Procure Deus para se libertar das lembranças do plano físico, Clara — falei.
—
Como fazer isso se os meus amores, pai, mãe, tios, noivo, todos ficaram? Como
recomeçar diante de estranhos?
—Não
existem estranhos em nossa vida, todos somos irmãos. Procure reequilibrar-se,
quem sabe assim você ajuda seus pais e eles a você?
—
Vocês conhecem meus pais?
Enrico,
com mais conhecimento, esclareceu:
—
Fomos à sua casa e lá encontramos até o seu chinelo no mesmo lugar em que você
o deixou. Todas as refeições lhe são ainda servidas. Tudo o que lá é feito é
para você.
—
Meu Deus, por isso esse mal-estar que sinto. É como se estivesse enleada em uma
teia de aranha e, por mais que eu faça, não consigo desvencilhar-me. Ajude-me a
socorrer meus pais. Sei que eles estão sofrendo muito mais do que eu.
—
Tem razão, mas você tem de procurar sarar. Depois a levaremos até eles para
você mesma auxiliá-los.
—
Sinto-me tão fraca... Não tenho condição de ajudá-los.
Estou
revoltada; meu noivo não morreu, por que só eu morri?
Engana-se,
se você não morreu, agora é que está querendo morrer, não assumindo a nova vida
que Deus lhe ofertou.
—
Deus? Quem é Deus para dispor do nosso destino? Ele, que dizem ser bondoso,
separa uma filha dos seus pais; uma mulher apaixonada do seu noivo? Que bondade
é essa?
Responda-me!
—
Sim. Ele é tão bondoso que lhe dá o direito de não O compreender, cada um de
nós é livre para agir como tem vontade.
Enquanto
conversávamos, entrou o doutor Paulo.
—
Bom-dia, irmãos, como vai Clara? Apontando para Enrico, respondeu:
—
Ele segurou a minha cabeça, falou algumas coisas e eu melhorei.
Enrico
sorriu e Paulo pediu que nos retirássemos e o esperássemos na sala ao lado.
Despedimo-nos de Clara e saímos. Não demorou muito e o doutor Paulo
encontrou-nos na sala de espera. Agradecendo a Enrico a cooperação, contou-nos
sobre a luta que estavam enfrentando por causa das invocações da família de
Clara.
—
E o noivo, irmão, também está desesperado?
—
Não. Já está namorando outra, mas Clara ainda não sabe.
—
E os pais, sabem?
—
Não. O que vai ser outro drama.
—
Doutor, nós estivemos na casa de Clara e constatamos que o seu quarto nem foi
desarrumado e que as refeições são lhe oferecidas diariamente.
—
São lamentáveis certos comportamentos dos encarnados que, na hora do adeus, não
sabem como agir e, apegados às lembranças, vão dia após dia se autodestruindo,
fazendo muito mal para aquele que retornou a este plano. É preciso fazer com que
a família de Clara mude de atitude.
—
Podemos tentar, Enrico?
— Não, Luiz, não podemos, deixemos que outros
espíritos levem a família a buscar uma Casa Espírita.
—
Desculpe-me, mas poucas famílias ficam na Doutrina depois que passa a saudade.
—
Essas famílias, mesmo não ficando na Doutrina, passam por ela e algo aprendem.
Uma das mais belas lições ensinadas pelos espíritas é a caridade. Ela é o
remédio para a saudade.
Os
pais de Clara são espíritos comprometidos com o pretérito.
O
orgulho, a vaidade, o apego aos bens materiais são defeitos que carregam há
muitos anos e a dor que hoje enfrentam é cobrança do passado. Quem fez chorar
no ontem hoje tem os olhos transbordantes de lágrimas. Logo, com a ajuda dos amigos
encarregados do consolo, eles buscarão um médium que terá condição de lhes dar algumas
notícias.
—
Eles irão receber mensagens de Clara?
—
Agora é impossível, quem sabe daqui a alguns anos?
—
Anos, irmão...? Espantei-me.
—
Luiz, você mesmo constatou o desequilíbrio de Clara, como podemos colocá-la
para psicografar?
—
É mais complicado do que se imagina uma comunicação através da psicografia,
porque o desencarnado tem de aprender a escrever novamente. E a família também
tem de estar preparada, nem que seja um pouco.
—
É irmão Paulo, mas existem os que brincam com coisas sublimes da Doutrina. Já
imaginou o quanto é importante para uma família ter notícias do ente querido?
—
Espero que na próxima visita a Clara vocês a encontrem bem melhor.
—
Esperamos que sim, falei.
Enrico
apertou a mão de Paulo e comentou:
—
Irmão, se cada homem se conscientizasse do valor da busca espiritual, hoje não
nos defrontaríamos com tantos absurdos que são cometidos pelos que ficam. Até
outra vez.
—
Enrico, muitos dos que se dizem espíritas ainda não conhecem o trabalho dos
desencarnados, julgam que os espíritos sabem de tudo, não é mesmo?
—
Você bem conhece esse problema... — disse, apontando para mim.
—Fico
bastante triste quando me chamam para desatolar carro, consertá-lo e até para
colocar gasolina!... Os que estão fazendo prova para vestibular também chamam e
pedem para os espíritos fazerem as provas, enquanto que aqui cada um tem o seu
trabalho, desempenhando aquilo que tem capacidade para fazer. Os encarnados
precisam se conscientizar de que não é porque o espírito não tem mais um corpo
de carne que ele aprendeu tudo, que tudo sabe. Um dia desses um marido queria,
porque queria, que eu fizesse o parto da mulher dele, porque morria de ciúme
dos médicos e relutava em levá-la ao hospital. Pedia e pedia para que eu
fizesse o parto juntamente com Sadu, Samita, Rayto, enfim, todos os Raiozinhos
de Sol.
—
E vocês fizeram o parto? Quis saber, Enrico, rindo.
—
Como? Apenas oramos para que o bom senso aflorasse naquele homem.
—
Luiz, quando as Casas pedem para os freqüentadores buscarem o estudo, muitos
acham que já sabem de tudo sobre o Espiritismo, porque já leram inúmeros
livros. Esse é o perigo, porque não basta ler este ou aquele livro e viver citando
este ou aquele trecho. O que é preciso é buscar os livros educativos, eles,
sim, os elucidarão como proceder com os espíritos. Ler os livros espíritas, os
romances, está muito certo, mas eles são apenas os complementares. A raiz são
as obras básicas da Codificação.
—
Sabe, Enrico, espírito sofre!...
Coloquei
meus braços em seus ombros e fomos caminhando, contando as nossas experiências.
Luiz
Sérgio
NA
HORA DO ADEUS
Psicografía:
Irene Pacheco Machado
2a
Edição • 1997
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