O
animal está sujeito à luta ardente pela vida. Entre as ervas do
prado, as folhas e a ramaria dos bosques, nos ares, no seio das
águas, por toda a parte desenrolam-se dramas ignorados. Em nossas
cidades prossegue sem cessar a hecatombe de pobres animais
inofensivos, sacrificados às nossas necessidades ou entregues nos
laboratórios ao suplício da vivissecção*.
Quanto
à Humanidade, sua história não é mais que um longo martirológio.
Através dos tempos, por cima dos séculos, rola a triste melopéia
dos sofrimentos humanos; o lamento dos desgraçados sobre com uma
intensidade dilacerante, que tem a regularidade de uma vaga.
A
dor segue todos os nossos passos; espreita-nos em todas as voltas do
caminho. E, diante desta esfinge que o fita com seu olhar estranho, o
homem faz a eterna pergunta: Por que existe a dor?
É,
no que lhe concerne, uma punição, uma expiação, como o dizem
alguns?
É
a reparação do passado, o resgate das faltas cometidas?
Fundamentalmente
considerada, a dor é uma lei de equilíbrio e educação. Sem
dúvida, as falhas do passado recaem sobre nós com todo o seu peso e
determinam as condições de nosso destino. O sofrimento não é,
muitas vezes, mais do que a repercussão das violações da ordem
eterna cometidas; mas, sendo partilha de todos, deve ser considerado
como necessidade de ordem geral, como agente de desenvolvimento,
condição do progresso. Todos os seres têm de, por sua vez, passar
por ele. Sua ação é benfazeja para quem sabe compreendê-lo; mas,
somente podem compreendê-lo aqueles que lhe sentiram os poderosos
efeitos. É principalmente a esses, a todos aqueles que sofrem, têm
sofrido ou são dignos de sofrer que dirijo estas páginas.
A
dor e o prazer são as duas formas extremas da sensação. Para
suprimir uma ou outra seria preciso suprimir a sensibilidade. São,
pois, inseparáveis em princípio e ambos necessários à educação
do ser, que, em sua evolução, deve experimentar todas as formas
ilimitadas, tanto do prazer como da dor.
A
dor física produz sensações; o sofrimento moral produz
sentimentos. Mas, como já vimos, no sensório íntimo, sensação e
sentimento confundem-se e são uma só e mesma coisa.
O
prazer e a dor estão, pois, muito menos nas coisas externas do que
em nós mesmos; incumbe, pois, a cada um de nós, regulando suas
sensações, disciplinando seus sentimentos, dominar umas e outras e
limitar-lhes os efeitos. Epíteto dizia:
“As coisas são apenas o que imaginamos que são.” Assim, pela
vontade podemos domar, vencer a dor ou, pelo menos, fazê-la redundar
em nosso proveito, fazer dela meio de elevação.
Dá-se
o mesmo com todos os heróis, com todos os grandes caracteres, com os
corações generosos, com os espíritos mais eminentes. Sua elevação
mede-se pela soma dos sofrimentos que passaram. Ante a dor e a morte,
a alma do herói e do mártir revela-se em sua beleza comovedora, em
sua grandeza trágica, que toca às vezes o sublime e o nimba de uma
luz inextinguível.
Suprimi
a dor e suprimireis, ao mesmo tempo, o que é mais digno de admiração
neste mundo, isto é, a coragem de suportá-la. O mais nobre
ensinamento que se pode apresentar aos homens não é a memória
daqueles que sofreram e morreram pela verdade e pela justiça? Há
coisa mais augusta, mais venerável que seus túmulos? Nada iguala o
poder moral que daí provém. As almas que deram tais exemplos
avultam aos nossos olhos com os séculos e parecem, de longe, mais
imponentes ainda; são outras tantas fontes de força, mais
imponentes ainda; são outras tantas fontes de força e beleza onde
vão retemperar-se as gerações. Através do tempo e do espaço, sua
irradiação, como a luz dos astros, estende-se sobre a Terra. Sua
morte gerou a vida, e sua lembrança, como aroma sutil, vai lançar
em toda a parte a semente dos entusiasmos futuros.
É,
como nos ensinaram essas almas, pela dedicação, pelo sofrimento
dignamente suportados que se sobem os caminhos do céu. A história
do mundo não é outra coisa mais que a sagração do espírito pela
dor. Sem ela, não pode haver virtude completa, nem glória
imperecível.
É
necessário sofrer para adquirir e conquistar. Os atos de sacrifício
aumentam as radiações psíquicas. Há como que uma esteira luminosa
que segue, no Espaço, os Espíritos dos heróis e dos mártires.
Aqueles
que não sofreram, mal podem compreender estas coisas, porque, neles,
só a superfície do ser está arroteada, valorizada. Há falta de
largueza em seus corações, de efusão em seus sentimentos; seu
pensamento abrange horizontes acanhados. São necessários os
infortúnios e as angústias para dar à alma seu aveludado, sua
beleza moral, para despertar seus sentidos adormecidos. A
vida dolorosa é um alambique onde se destilam os seres para mundos
melhores. A forma, como o coração, tudo se embeleza por ter
sofrido. Há, já nesta vida, um não sei quê de grave e enternecido
nos rostos que as lágrimas sulcaram muitas vezes. Tomam uma
expressão de beleza austera, uma espécie de majestade que
impressiona e seduz.
Michelangelo
adotara como norma de proceder os preceitos seguintes: “Concentra-te
e faze como o escultor faz à obra que quer aformosear. Tira o
supérfluo, aclara o obscuro, difunde a luz por tudo e não largues o
cinzel.”
Máxima
sublime, que contém o princípio de todo o aperfeiçoamento íntimo.
Nossa alma é nossa obra, com efeito, obra capital e fecunda, que
sobrepuja em grandeza todas as manifestações parciais da Arte, da
Ciência, do gênio.
A
dor não fere somente os culpados. Em nosso mundo, o homem honrado
sofre tanto como o mau, o que é explicável. Em primeiro lugar, a
alma virtuosa é mais sensível por ser mais adiantado o seu grau de
evolução; depois, estima muitas vezes e procura a dor, por lhe
conhecer todo o valor.
A
dor física é, em geral, um aviso da Natureza, que procura
preservar-nos dos excessos. Sem ela, abusaríamos de nossos órgãos
até ao ponto de os destruirmos antes do tempo. Quando um mal
perigoso se vai insinuando em nós, que aconteceria se não lhe
sentíssemos logo os efeitos desagradáveis? Iria cada vez lavrando
mais, invadir-nos-ia e secaria em nós as fontes da vida.
Às
almas fracas, a doença ensina a paciência, a sabedoria, o governo
de si mesmas. Às almas fortes pode oferecer compensações de ideal,
deixando ao Espírito o livre vôo de suas aspirações até ao ponto
de esquecer os sofrimentos físicos.
A
ação da dor não é menos eficaz para as coletividades do que o é
para os indivíduos. Não foi graças a ela que se constituíram os
primeiros agrupamentos humanos? Não foi a ameaça das feras, da
fome, dos flagelos que obrigou o indivíduo a procurar seu
semelhantes para se lhe associar? Foi da vida comum, dos sofrimentos
comuns, da inteligência e labor comuns que saiu toda a Civilização,
com suas artes, ciências e indústrias!
Por
trás da dor, há alguém invisível que lhe dirige a ação e a
regula segundo as necessidades de cada um, com uma arte, uma
sabedoria infinitas, trabalhando por aumentar nossa beleza interior
nunca acabada, sempre continuada, de luz em luz, de virtude em
virtude, até que nos tenhamos convertido em Espíritos celestes.
Por
mais admirável que possa parecer à primeira vista, a dor é apenas
um meio de que usa o Poder Infinito para nos chamar a si e, ao mesmo
tempo, tornar-nos mais rapidamente acessíveis à felicidade
espiritual, única duradoura. É, pois, realmente, pelo amor que nos
tem, que Deus envia o sofrimento. Fere-nos, corrige-nos como a mãe
corrige o filho para educá-lo e melhorá-lo; trabalha
incessantemente para tornar dóceis, para purificar e embelezar
nossas almas, porque elas não podem ser verdadeiras, completamente
felizes, senão na medida correspondente às suas perfeições.
À
medida que avançamos na vida, as alegrias diminuem e as dores
aumentam; o corpo e o fardo da vida tornam-se mais pesados. Quase
sempre a existência começa na felicidade e finda na tristeza. O
declínio traz, para a maior parte dos homens, o período moroso da
velhice com suas lassidões, enfermidades e abandonos. As luzes
apagam-se; as simpatias e as consolações retiram-se; os sonhos e as
esperanças desvanecem-se; abrem-se, cada vez mais numerosas, as
covas em roda de nós. É então que vêm as longas horas de
imobilidade, inação, sofrimento; obrigam-nos a refletir, a passar
muitas vezes em revista os atos e as lembranças de nossa vida.
É
uma prova necessária para que a alma, antes de deixar seu invólucro,
adquira a madureza, o critério e a clarividência das coisas que
serão o remate de sua carreira terrestre. Por isso, quando
amaldiçoamos as horas aparentemente estéreis e desoladas da velhice
enferma, solitária, desconhecemos um dos maiores benefícios que a
Natureza nos proporciona; esquecemos que a velhice dolorosa é o
cadinho onde se completam as purificações.
Nesse
momento da existência, os raios e as forças que, durante os anos da
juventude e da virilidade, dispersávamos para todos os lados em
nossa atividade e exuberância, concentram-se, convergem para as
profundezas do ser, ativando a consciência e proporcionando ao homem
mais sabedoria e juízo. Pouco a pouco vai-se fazendo a harmonia
entre os nossos pensamentos e as radiações externas; a melodia
íntima afina com a melodia divina.
Há,
então, na velhice resignada, mais grandeza e mais serena beleza que
no brilho da mocidade e no vigor da idade madura. Sob a ação do
tempo, o que há de profundo, de imutável em nós, desprende-se e a
fronte dos velhos aureola-se de claridades do Além.
A
todos aqueles que perguntam: Para que serve a dor? Respondo: Para
polir a pedra, esculpir o mármore, fundir o vidro, martelar o ferro.
Serve para edificar e ornar o templo magnífico, cheio de raios, de
vibrações, de hinos, de perfumes, onde se combinam todas as artes
para exprimirem o divino, prepararem a apoteose do pensamento
consciente, celebrarem a libertação do Espírito!
E
vede qual o resultado obtido! Com o que eram em nós elementos
esparsos, materiais informes e, às vezes até, o vicioso e decaído,
ruínas e destroços, a dor levantou, construiu no coração do homem
um altar esplêndido à Beleza Moral, à Verdade Eterna!
A
dor será necessária enquanto o homem não tiver posto o seu
pensamento e os seus atos de acordo com as leis eternas; deixará de
se fazer sentir logo que se fizer a harmonia. Todos os nossos males
provêm de agirmos num sentido oposto à corrente divina; se
tornarmos a entrar nessa corrente, a dor desaparece com as causas que
a fizeram nascer.
Por
muito tempo ainda a Humanidade terrestre, ignorante das leis
superiores, inconsciente do futuro e do dever, precisará da dor para
estimulá-la na sua via, para transformar o que nela predomina, os
instintos primitivos e grosseiros, em sentimentos puros e generosos.
Por muito tempo terá o homem de passar pela
iniciação amarga para chegar ao conhecimento de si mesmo e do alvo
a que deve mirar. Presentemente ele só cogita de aplicar suas
faculdades e energias em combater o sofrimento no plano físico, a
aumentar o bem-estar e a riqueza, a tornar mais agradáveis as
condições da vida material; mas, será em vão. Os sofrimentos
poderão variar, deslocar-se, mudar de aspecto; a dor persistirá,
enquanto o egoísmo e o interesse regerem as sociedades terrestres,
enquanto o pensamento se desviar das coisas profundas, enquanto a
flor da alma não tiver desabrochado.
Ó
vós todos que vos queixais amargamente das decepções, das
pequeninas misérias, das tribulações de que está semeada toda a
existência e que vos sentis invadidos pelo cansaço e pelo desânimo:
se quereis novamente achar a resolução e a coragem perdidas, se
quereis aprender a afrontar alegremente a adversidade, a suportar
resignados a sorte que vos toca, lançai um olhar atento em roda de
vós! Considerai as dores tantas vezes ignoradas dos pequenos, dos
deserdados, os sofrimentos de milhares de seres que são homens como
vós; considerai estas aflições sem conta; cegos privados do raio
que guia e conforta, paralíticos impotentes, corpos que a existência
torceu, ancilosou, quebrou, que padecem de males hereditários! E os
que carecem do necessário, sobre quem sopra, glacial, o inverno!
Pensai
em todas essas vidas tristes, obscuras, miseráveis; comparai vossos
males muitas vezes imaginários com as torturas de vossos irmãos de
dor, e julgar-vos-eis menos infelizes, ganhareis paciência e coragem
e de vosso coração descerá sobre todos os peregrinos da vida, que
se arrastam acabrunhados no caminho árido, o sentimento de uma
piedade sem limites e de um amor imenso!
O
mal moral existe na alma somente em suas dissonâncias com a harmonia
divina. Mas, à medida que ela sobe para uma claridade mais viva,
para uma verdade mais ampla, para uma sabedoria mais perfeita, as
causas do sofrimento vão-se atenuando, ao mesmo tempo que se
dissipam as ambições vãs, os desejos materiais. E de estância em
estância, de vida em vida, ela penetra na grande luz e na grande paz
onde o mal é desconhecido e onde só reina o bem!
(Léon
Denis - Obra: O Problema do Ser, do Destino e da Dor)
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