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segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Entre a Terra e o Céu_32_Recapitulação

De volta ao hospital, o enfermeiro não encontrou pessoalmente o chefe, que se ausentara, constrangido por serviço urgente, mas recebeu das mãos de velha auxiliar a papeleta de instruções. (...) Um menino, perfeitamente caracterizado nas indicações, atacado de crupe, exigia socorro imediato.
(...)
Acolhido cortesmente pelo dono da casa, não ocultou a perplexidade que o possuiu, de assalto.
Identificado pelo ferroviário que lhe exprimia gentileza e contentamento na saudação, tartamudeava alguns monossílabos, desapontado, espantadiço...
Revelava-se-lhe a decepção na extrema palidez do rosto.
Então - refletia, acabrunhado - era aquela casa que lhe cabia atender?  Se soubesse de antemão, teria solicitado um substituto.  Não pretendia reaproximar-se dos desafetos dos quais se havia distanciado... Abominava o homem que lhe furtara a noiva e não podia lembrar-se de Zulmira sem observar-se tocado de insólita aversão... Muita vez, rememorando o passado, calculava quanto ao melhor meio de aniquilar-lhe a existência...
Porque lhe competia revê-la?  Porque salvar-lhe o filho, se experimentava ímpetos de incendiar-lhe a casa?
Entretanto, algo interferia em suas reflexões.  Antonina e os filhinhos, no culto do Evangelho, tomavam-lhe a tela mental.  Parecia-lhe ouvir, de novo, a palavra meiga e sincera daquela mulher valorosa, repetindo-lhe ao coração:
"As mãos que curam não podem ferir..."
"Um enfermeiro diligente será, sem dúvida, o irmão de todos..."
"A vida não termina neste mundo..."
"Precisamos desculpar os outros para que os outros nos desculpem..."
Anotando-lhe a hesitação e propondo-se colocá-lo à vontade, Amaro solicitou em voz súplice:
- Entre, Mário!  Conforta-me reconhecer que receberemos o concurso de um amigo...
E indicando o quarto próximo, acrescentou:
- Zulmira está lá dentro com o nosso filhinho.  Já me entendi com o médico pelo telefone e sei que o crupe foi positivado.
O enfermeiro, impassível, obedeceu maquinalmente.
Varou a câmara, perturbado, lívido.
Quando viu a mulher que amara apaixonadamente, trazendo o pequenino ao colo, registrou súbita vertigem de revolta.
Incapaz de controlar-se, sentiu que estranha aflição lhe oprimia o peito.
A volúpia da vingança enceguecia-o...
Zulmira pagar-lhe-ia caro a deserção - pensava de olhos fixos na maternidade dolorosa que ali se exteriorizava em mortificante padecimento.
Contemplou a criancinha que a dispnéia agitava, e deu curso a incontida animosidade.  Tinha a impressão de odiá-la, de longa data.  Ele próprio se surpreendia, sobressaltado... Como podia detestar, assim, um inocente com tanta veemência?
Mas, acreditando justificar a terrível disposição de espírito com a circunstância de achar-se ali o fruto de uma ligação que lhe era insuportável, não procurou analisar-se.  A ideia de que Amaro e a esposa sofreriam irreparavelmente, com a morte do petiz, acalentou-lhe o duro propósito de desforço.  A felicidade daquele templo doméstico dependia, naquela hora, de sua atuação.  E se cooperasse com a morte, auxiliando aquele rebento enfermiço a desaparecer?  A pergunta criminosa traspassou-lhe o pensamento como um estilete de treva.
Contudo, a lembrança do culto de oração, no lar de Antonina, voltava-lhe à cabeça.
(...)
Os retalhos da palestra edificante afiguravam-se-lhe rédeas intangíveis a lhe sofrearem a expansão dos malignos desejos.
Os conflitos sentimentais desenrolavam-se-lhe na consciência em breve minuto...
Quase cambaleante, acercou-se da ex-noiva torturada, que o reconheceu de pronto, tentando cumprimentá-lo.
Correspondeu à saudação, cerimonioso, dispondo-se ao serviço.
- Mário! - implorou a pobre senhora, agoniada - compadeça-se de nós! Ajude-nos! Esperei meu filhinho, suportando os maiores sacrifícios... Será crível deva agora vê-lo morrer?
(...)
Noutro tempo, qualquer pedido daquela boca lhe impunha inquietação, mas naquele instante soberana indiferença enrijecia-lhe o espírito.  Que lhe importava a dor da mulher que o abandonara?  Zulmira rira-se dele, anos antes... não lhe cabia rir-se agora?
De semblante rude, recomendou fosse a criança restituída ao leito e, logo após, tateou-lhe a sensibilidade.
De pensamento martelado pelas ideias recolhidas no estudo evangélico da noite e contido pela suave lembrança de Antonina, buscava refazer-se.
Ainda assim, como se carregasse um gênio infernal na própria mente, assinalou as criminosas sugestões que lhe atravessavam o cérebro esfogueado.
A ministração de medicamento impróprio, decerto, favoreceria a rápida extinção do enfermo.  Júlio encontrava-se à beira da sepultura... Apenas o impeliria a precipitar-se nela sem mais delonga...
Todavia, o semblante de Antonina dominava-lhe a memória, exaltando o perdão.
Se viesse àquela casa na véspera - considerou consigo mesmo - teria exterminado o petiz sem piedade...  Recorreria à eutanásia para justificar-se intimamente.
Naquela hora, porém, os princípios evangélicos da fraternidade e da conciliação, como pensamentos intrusos, atazanavam a consciência.
Esperou, silencioso, a reação do menino ofegante e embora assinalasse graves complicações que, certo, deveriam induzi-lo a comunicar-se com o médico responsável, fez a aplicação do soro anti-diftérico, desejoso, porém, de vê-lo transformar-se em veneno destruidor.
Reparamos que as mãos de Mário expeliam escura substância, mas Clarêncio, pousando a destra sobre o pequenino, mantinha-o isolado de semelhantes forças.
Ante o assombro com que observávamos a exteriorização daquele visco enegrecido, nosso instrutor elucidou de boa vontade:
- São fluidos deletérios do ódio com que Silva, inconscientemente, procura envolver a infeliz criança, contudo, as nossas defesas estão funcionando.
Odila, que chamara Blandina e Mariana até nós, acompanhava a medicação, ansiosamente.
- Abnegado amigo - dirigiu-se, inquieta, ao nosso orientador - acredita que Júlio possa recuperar-se?
Clarêncio, que estabelecera extensa faixa magnética em torno do doentinho, presenvando-o contra a influência do visitante, meneou a cabeça e falou paternal:
- Odila, é tempo de penetrares a verdade.  O menino deixará o corpo talvez em breves horas.  O futuro dele exige a frustração do presente.  Fortalece-te, contudo... A Vontade Divina, expressa na Lei que nos rege, faz sempre o melhor.
E talvez porque nossa irmã, decepcionada ensaiasse nova perquirição, o devotado condutor pediu-lhe, calmo:
- Não indagues agora.  Saberás mais tarde. Julio reclama assistência, vigilância, carinho.
(...)
O enfermeiro fitava o pequeno, qual se estivesse a hipnotizá-lo para a morte, observando-lhe as contrações faciais.
Os genitores fixavam igualmente a criança, em tremenda expectativa.
Em dado instante, Júlio estremeceu, empalidecendo. Descontrolara-se-lhe o coração.
Examinando-lhe o pulso, Silva, agora aterrado, procurou os olhos de Amaro, aflito, e solicitou em voz menos dura:
- Convém a presença imediata do nosso facultativo.  Receio um choque anafilático de consequências fatais.
Zulmira deixou escapar um grito rouco, sendo socorrida pela carinhosa Evelina, enquanto o ferroviário se despejava porta a fora, em busca do pediatra.
(...)
- Surgiu o colapso irremediável.  Infelizmente é o fim.  Se o senhor tem fé religiosa, confiemos o caso a Deus.  Agora, somente a concessão divina...
(...)
Júlio, em coma, respirava dificilmente.
(...)
... Amaro encaminhou-se para a janela próxima, como quem procurava consolo, no seio agasalhante da noite, e começou a chorar em silêncio.
Ao lado da criancinha agonizante, o enfermeiro observava-lhe a atitude sofredora e humilde, reconhecendo-se tocado no ima dalma.
Porque lutara contra semelhante inimigo? - pensava ensimesmado. - Amaro assemelhava-se a uma estátua de martírio silencioso.  Estava ali, cabisbaixo e vencido, no lar modesto em que era um homem de bem,  devotado à retidão.  Decerto, já havia amargado muito.  O rosto, sulcado de rugas precoces, que lhe detinham o pranto, falava da cruz de experiências difíceis que lhe pesava nos ombros.  Quantos problemas inquietantes teria defrontado no mundo aquele homem dobrado pelo rigor da sorte?   Como pudera ele, Mário Silva, ser ali tão cruel?  Rememorou as passagens da hora de estudo e prece, entendendo, enfim, que o Evangelho estribava-se nas melhores razões.  Mais valia conciliar-se depressa com o adversário que enterrar um espinho de remorso no próprio peito, e ele notava, triste, que o remorso como lâmina acerada lhe retalhava o coração... Amaro e a esposa, indiscutivelmente, poderiam ter manifestado desconfiança ao revê-lo, recusando-lhe o concurso, entretanto, acolheram-no, fraternalmente, de braços abertos... Se o haviam ferido, noutro tempo, não se achavam agora sob o guante de terrível flagelação?  Rendia graças a Deus por não haver injetado substâncias tóxicas no doentinho agora moribundo, mas não teria, acaso, concorrido para abreviar-lhe a morte?  Experimentava o desejo de abeirar-se do pai desditoso, tentando confortá-lo, mas sentia vergonha de si mesmo...
Durante quase duas horas permaneceram ali, os dois, calados e impassíveis.
A aurora começava a refletir-se no firmamento em largas riscas rubras, quando o ferroviário abandonou a meditação, aproximando-se do filhinho quase morto.
Num gesto comovente de fé, retirou da parede velho crucifixo de madeira, e colocou-o à cabeceira do agonizante.  Em seguida, sentou-se no leito e acomodou o menino ao colo com especial ternura.  Amparado espiritualmente por Odila, que o enlaçava, demorou o olhar sobre a imagem do Cristo Crucificado e orou em alta voz:
- Divino Jesus, compadece-te de nossas fraquezas!... Tenho meu espírito frágil para lidar com a morte!  Dá-nos força e compreensão... Nossos filhos te pertencem, mas como nos dói restituí-los, quando a tua vontade no-los reclama de volta ! ...
O pranto  embargava-lhe a voz, mas o pai sofredor, demonstrando a sua imperiosa necessidade de oração, prosseguiu:
- Se é de teu desígnio que o nosso filhinho parta, Senhor, recebe-o em teus braços de amor e luz! Concede-nos, porem, a precisa coragem para suportar, valorosamente, a nossa cruz de saudade e dor!...Dá-nos resignação, fé, esperança!... Auxilia-nos a entender-te os propósitos e que a tua vontade se cumpra hoje e sempre!...
Jatos de safirina claridade escapavam-lhe do peito, envolvendo a criança, que, pouco a pouco, adormeceu.
Júlio afastou-se do corpo de carne, abrigando-se nos braços de Odila, à maneira de um órfão que busca tépido ninho de carícias.
Tocado nas fibras mais recônditas do ser e percebendo que a morte ali estendera as suas grandes asas, Silva experimentou violenta comoção a constrangir-lhe a alma.  Convulsivo choro agitou-lhe o peito, enquanto uma voz inarticulada, que parecia nascer nos recessos dele mesmo, gritava-lhe na consciência:
- Assassino!  Assassino! ...
Desorientado e inseguro, o moço correu para a via pública, achando-se, atormentado, no seio da sombra fria, soluçando...

QUESTÕES PROPOSTAS PARA ESTUDO

1. O que levava o enfermeiro a tanto ódio, inclusive à criança, que o levava a surpreender-se consigo mesmo?

2. O sentimento negativo que movia o enfermeiro pode ter tido influência na morte de Júlio?

3. Como explicar o seguinte parágrafo: "Reparamos que as mãos de Mário expeliam escura substância, mas Clarêncio, pousando a destra sobre o pequenino, mantinha-o isolado de semelhantes forças."

4. O que levou Mario Silva a mudar de atitude em relação à família, por quem nutrira tanto ódio ?

5. Qual a finalidade da reencarnação de Júlio, já que ele teve que retornar tão brevemente?

Conclusão:

QUESTÕES PROPOSTAS PARA ESTUDO

1. O que levava o enfermeiro a tanto ódio, inclusive à criança, que o levava a surpreender-se consigo mesmo?

Todos os envolvidos na trama presente estiveram igualmente juntos num dramático episódio do passado.  Júlio, a criança a ser assistida, fora desafeto de Mário, o enfermeiro, em encarnação pretérita, num triângulo amoroso que envolveu sua atual mãe, Zulmira. Em que pese o esquecimento do passado imposto ao espírito ao renascer na carne, as simpatias e antipatias cultivadas numa experiência terrena subsistem à morte do corpo físico e ao futuro renascimento corporal. Espíritos antipáticos se advinham e se reconhecem sem mesmo precisar se falarem. Disseram os Espíritos a Kardec que, entre os seres pensantes, há ligações que ainda não conhecemos e que o magnetismo é que comanda esta  ciência, que mais tarde, à medida que formos evoluindo moral e intelectualmente, nos será dado conhecer. Por essas razões é que o enfermeiro odiava, instintivamente, a criança doente.

2. O sentimento negativo que movia o enfermeiro pode ter tido influência na morte de Júlio?

Pela narrativa de André Luiz, em que pese o enfermeiro, inconscientemente, despejar energias negativas sobre o pequeno Júlio, a criança não foi envolvida por esses fluidos deletérios de ódio que sobre ela eram derramados.  O benfeitor Clarêncio neutralizou os efeitos desses fluidos, que poderiam vir a agravar a saúde de Júlio, ministrando-lhe passe magnético. Com essa providência, evitou que o doente fosse envolvido pela descarga de energias que o sentimento negativo de Mário gerava.

3. Como explicar o seguinte parágrafo: "Reparamos que as mãos de Mário expeliam escura substância, mas Clarêncio pousando a destra sobre o pequenino, mantinha-o isolado de semelhantes forças."?

Temos estudado a importância dos pensamentos e dos sentimentos que a nossa casa mental produz. A mente, como vimos nos estudos anteriores, é que comanda as transformações do perispírito e que são repassadas para o  corpo físico. Quando emitimos um pensamento ou nutrimos um sentimento, o perispírito  capta  imediatamente  essas irradiações e reage sobre o organismo fisiológico. O corpo físico é um complexo que envolve em sua composição, dentre outros tipos de matéria orgânica, moléculas e células que vibram de acordo com o produto da mente. O corpo físico irradia energias magnéticas, cuja natureza - boa ou má - depende da natureza do pensamento ou do sentimento.
Essas energias podem ser captadas pelos que se encontram próximos, desde que a sintonia vibratória o permita.
Mário, como vimos, nutria um ódio aparentemente injustificável pela criança,mesmo sem entender por que, pois era um sentimento gerado num passado temporariamente esquecido. Esse sentimento produzia reações em seu  perispírito, que eram repassadas ao corpo físico e, finalmente, irradiadas. Como o sentimento que alimentava era negativo, as irradiações eram uma substância deletéria, escura, conforme descreveu André Luiz. Graças à intercessão de Clarêncio, o pequeno doente não recepcionou essas energias.

4. O que levou Mário Silva a mudar de atitude em relação à família, por quem nutrira tanto ódio?

Apesar de tudo, o enfermeiro lutava, intimamente, para superar aquele sentimento. Para tanto, o fator decisivo foi a reunião de que participou momentos antes de se dirigir à residência daquela família. Como estudamos no  capítulo anterior, a necessidade de nos harmonizarmos com a Lei do Amor é uma imposição de Deus. No estudo do Evangelho de que participara, ouvira preciosos esclarecimentos a respeito da necessidade da reconciliação com  o  adversário enquanto estamos com ele a caminho. Esse ensinamento evangélico repercutiu no enfermeiro, neutralizando o desejo de vingança, que chegou a nele se manifestar. Conhecendo a verdade, conforme nos disse o Cristo, nos libertaremos.
E a verdade libertou Mário do desejo de vingança, evitando que praticasse um ato que lhe traria graves conseqüências espirituais, futuramente.

5. Qual a finalidade da reencarnação de Júlio, já que ele teve que retornar tão brevemente?

As mortes prematuras, segundo ensinam os Espíritos, podem representar para o espírito encarnado o complemento de existência precedente interrompida antes do momento previsto e, também, uma prova ou expiação para os pais.
No caso que estamos estudando, temos um exemplo claro desse ensinamento. Júlio, o espírito que prematuramente deixava a vida física, em existência passada atentou por duas vezes contra o próprio corpo, concretizando  a  morte física na segunda tentativa.

Reencarnou para complementar aquela existência, aprender a valorizar  a  encarnação e, principalmente,  limpar  seu organismo perispiritual das lesões ocasionadas pelo suicídio. Por outro lado, seu retorno à vida física serviu também para que seus pais, que contribuíram para aquele acontecimento pretérito, expiassem o erro, mediante a dor que inevitavelmente seria sentida ao verem o filho, tão cedo, partir de volta ao mundo espiritual. Foi, assim, uma imposição da Lei Natural. Amarga, dolorosa, mas necessária ao reequilíbrio daqueles os espíritos envolvidos.

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