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sexta-feira, 26 de setembro de 2014

DURA REALIDADE (1ª Parte)

Quando, em agosto de 1865, Allan Kardec, publicou “O CÉU E O INFERNO” ou “A JUSTIÇA DIVINA SEGUNDO O ESPIRITISMO”, abriu caminho para um conhecimento mais amplo sobre a realidade que aguarda a criatura humana no trânsito da vida física para a espiritual. Especialmente na segunda parte do livro onde mais de seis dezenas de depoimentos revelam as sensações e surpresas daqueles que se despedem do plano mais material.
No século XX, surge a contribuição de vários médiuns como Fernando Lacerda, Ivone Pereira, Zilda Gama e a extraordinária de Francisco Cândido Xavier da qual podemos destacar CARTAS DE UMA MORTA (1935), NOSSO LAR (1943), VOLTEI (1947), “INSTRUÇÕES PSICOFONICAS”, “VOZES DO GRANDE ALÉM e “FALANDO A TERRA”, Dos relatos emocionados de alguns desses espíritos comunicantes, destacamos alguns trechos para nossa reflexão.
Ceitil por Ceitil
Joaquim, morador de rua.
“Minha derradeira máscara física era a de um pobre homem, que tombou na via pública, num insulto cataléptico.
Tão pobre que ninguém lhe reclamou o suposto cadáver.
Conduzido à laje úmida, não consegui falar e nem ver, contudo, não obstante a inércia, meus sentidos da audição e o olfato, tanto quanto a noção de mim mesmo, estavam vigilantes.
Impossível para mim descrever-vos o que significa o pavor de um morto-vivo.
Depois de muitas horas de expectativa, levaram-me seminu para a câmara fria.
Suportei o ar gelado, gritando intimamente sem que a minha boca hirta obedecesse.
Não posso enumerar as horas de aflição que me pareceram intermináveis.
Inutilmente procurei reagir.
Achava-me cego, mudo e paralítico...
Assinalava, porém, as frases irreverentes em torno e conseguia ajuizar, quanto à posição dos grupos a se dispersarem junto de mim...
Mais alguns minutos de espera ansiosa e senti que lâmina afiada me rasgava o abdômen.
Protestei, com mais força, no imo de minhalma, no entanto, minha língua jazia imóvel.
Tolerando padecimentos inenarráveis, observei que me abriam o tórax e me arrebatavam o coração para estudo.
Em seguida, um choque no crânio para a trepanação fez-me perder a noção de mim mesmo e desprendi-me, enfim, daquele fardo de carne viva e inerte, fugindo horrorizado qual se fora um cão hidrófobo, sem rumo...
Não tenho palavras para expressar a perturbação a que me reduzira.
E, até agora, não sou capaz de imaginar, com exatidão, as horas que despendi na correria martirizante.
Trazido, porém, à vossa casa, suave calor me regenerou o corpo frio.
Escutei as vossas advertências e orações...
E braços piedosos de enfermeiros abnegados conduziram-me de maca a um hospital que funciona como santa retaguarda, além do campo em que sustentais abençoada luta.
Banhado em águas balsâmicas, aliviaram-se-me as dores.
Transcorridos alguns dias, implorei o favor de vir ao vosso núcleo de prece, solicitando-vos cooperação para que cadáveres, constrangidos aos tormentos da autópsia, recebessem, por misericórdia, o socorro de injeções anestésicas, antes das intervenções cirúrgicas, para que as almas, ainda não desligadas, conseguissem superar o pavor cadavérico que, depois da morte, é muito mais aflitivo que a própria morte em si.
Em resposta, porém, à minha alegação, um de nossos amigos - que considero agora também por meus amigos e benfeitores -, numa simples operação magnética, mergulhou-me no conhecimento da realidade e vi-me, em tempo recuado, envergando o chapéu de um mandarim principal...
O rubi simbólico investia-me na posse de larga autoridade.
Revi-me, numa noite de festa, determinando que um dos meus companheiros, por mero capricho de meu orgulho, fosse lançado em plena nudez num pátio gelado...
Ao amanhecer, recomendei lhe furtassem os olhos.
Mandei algemá-lo qual se fora um potro selvagem, embora clamasse compaixão...
Impassível, ordenei fosse ele esfolado vivo...
Depois, quando o infeliz se debatia nas vascas da morte, decidi fosse o seu crânio aberto, antes de entregue aos abutres, em pleno campo...
Exigi, ainda, lhe abrissem o abdômen e o tórax...
Reclamei-lhe o coração numa bandeja de prata...
O toque magnético impusera-me o conhecimento de minha dívida.
As reminiscências de sucessos tão tristes confortavam-me e humilhavam-me ao mesmo tempo.
Em pranto, nas fibras mais íntimas, indaguei dos mentores que me cercavam:
- Será, então, a justiça assim tão implacável?
Onde o amor nos fundamentos da vida?
Alguém que para vós aqui se movimenta, à feição de generosa mãe de todos, explicou-me com bondade:
- Amigo, viveste na indiferença e a ociosidade atrai sobre nós, com mais pressa, as conseqüências de nossas faltas. É por essa razão que a justiça funciona matematicamente para contigo, já que não chamaste a luz do amor ao campo de teu destino.
Compreendi, então, que se houvesse amado, cultivando a árvore da fraternidade, decerto que outras sementes, outras energias e outros recursos teriam interferido em minha grande tragédia, atenuando-me o sofrimento indescritível.
É por isso que, como lembrança, trago-vos a lição do meu passado-presente, com a afirmação de que tudo farei para aproveitar os favores que estou recolhendo, recordando a vós outros – e talvez seja este o único ponto valioso de minha humilde visitação - a palavra do Evangelho, quando nos deixa entrever que só o amor é capaz de cobrir a multidão de nossos pecados.
Que a humildade e o serviço, a boa vontade e as boas obras nos orientem o caminho, porque, com semelhante material, edificaremos o elevado destino que nos aguarda no grande porvir, para exaltar a justiça consoladora - a justiça que é também misericórdia de Nosso Pai.
Joaquim
A Hora da Verdade
G - , desencarnado por problemas cardíacos.
“Industrial, administrador e homem público, em atividade intensa e incessante, não admitia que o sepulcro me requisitasse tão apressadamente à meditação.
A angina, porém, espreitava-me, vigilante, e fulminou-me sem que eu pudesse lutar.
Recordo-me de haver sido arremessado a uma espécie de sono que me não furtava a consciência e a lucidez, embora me aniquilasse os movimentos.
Incapaz de falar ouvi os gritos dos meus e senti que mãos amigas me tateavam o peito, tentando debalde restituir-me a respiração.
Não posso precisar quantos minutos gastei na vertigem que me tomara de assalto, até que, em minha aflição por despertar, notei que a forma inerte me retornava a si, que minha alma entontecida regressava ao corpo pesado; no entanto, espessa cortina de sombra parecia interpor-se agora entre os meus afeiçoados e a minha palavra ressoante, que ninguém atendia...
Inexplicavelmente assombrado, em vão pedia socorro, mas acabei por resignar-me à idéia de que estava sendo vítima de estranho pesadelo, prestes a terminar.
Ainda assim, amedrontava-me a ausência de vitalidade e calor a que me via sentenciado.
Após alguns minutos de pavoroso conflito, que a palavra terrestre não consegue determinar, tive a impressão de que me aplicavam sacos de gelo aos pés.
Por mais verberasse contra semelhante medicação, o frio alcançava-me todo o corpo, até que não pude mais...
Aquilo valia por expulsão em regra.
Procurei libertar-me e vi-me fora do leito, leve e ágil, pensando, ouvindo e vendo...
Contudo, escoavam-se as horas e, não obstante contrariado, vi-me exposto à visão pública.
Mas oh! irrisão de meu novo caminho!...
Eu, que me sentia singularmente repartido, observei que todas as pessoas com acesso ao recinto, diante de mim, revelavam-se divididas em identidade de circunstâncias, porque, sem poder explicar o fenômeno, lhes escutava as palavras faladas e as palavras imaginadas.
Muitas diziam aos meus familiares em pranto:
- Meus pêsames! Perdemos um grande amigo...
E o pensamento se lhes esguichava da cabeça, atingindo-me como inexprimível jato de força elétrica, acentuando: - não tenho pesar algum, este homem deveria realmente morrer...
Outras se enlaçavam aos amigos, e diziam com a boca:
- Meus sentimentos! O doutor G. Morreu moço, muito moço.
E acrescentavam, refletindo: -
Morreu tarde... Ainda bem que morreu...
Velhaco! deixou uma fortuna considerável... Deve ter roubado excessivamente...
Outras, ainda, comentava junto à carcaça morta:
- Homem probo, homem justo!...
E falavam de si para consigo: - Político ladrão e sem palavra! Que a terra lhe seja leve e que o inferno o proteja!...
Via-me salteado por interminável projeção de espinhos invisíveis a me espicaçarem o coração.
Torturado de vergonha, não sabia de esconder-me.
Ainda assim, quisera protestar quanto às reprovações que me pareceram descabidas.
Realmente não fora o homem que devia ter sido, no entanto, até ali, vivera como o trabalhador interessado em quitar-se com os seus compromissos.
Não seria falta de caridade atacarem-me, assim, quando plenamente inabilitado a qualquer defensiva?
Por muito tempo, perdurava a conturbação, até que encontrei algum alívio...
Muitas crianças das escolas, que eu tanto desejaria ter ajudado, oravam agora junto a mim.
Velhos empregados das empresas em que eu transitara, e de cuja existência não cogitara com maior interesse, vinham trazer-me respeitosamente, com lágrimas nos olhos, a prece e o carinho de sincera emoção.
Antigos funcionários, fatigados e humildes, aos quais estimara de longe, ofertavam-me pensamentos de amor.
Alguns poucos amigos envolveram-me em pensamentos de paz.
Aquietei-me, resignado.
Doce bálsamo de reconhecimento acalmou-me a aflição e pude chorar, enfim...
Com o pranto, consegui encomendar-me à Bondade Infinita de Deus, respirando consolo e apaziguamento.
Humilhado, aguardei paciente as surpresas da nova situação.
Estava inegavelmente morto e vivo.
O catafalco não favorecia qualquer dúvida.
Curtia dolorosas indagações, quando, em dado instante, arrebataram-me o corpo.
Achava-me livre para pensar, mas preso aos despojos hirtos pelo estranho cordão que eu não podia compreender e, em razão disso, acompanhei o cortejo triste, cauteloso e desapontado.
Não valiam agora o carinho sincero e a devoção afetiva com que muitos braços amigos me acalentavam o ataúde...
A vizinhança do cemitério abalava a escassa confiança que passara a sustentar em mim mesmo.
O largo portão aberto, a contemplação dos túmulos à entrada e a multidão que me seguia, compacta, faziam-me estarrecer.
Tentei apoiar-me em velhos companheiros de ideal e de luta, mas o ambiente repleto de palavras vazias e orações pagas como que me acentuava a aflição e o desespero.
Senti-me fraquejar.
Clamei debalde por socorro, até que, com os primeiros punhados de terra atirados sobre o esquife, caí na sepultura acolhedora, sem qualquer noção de mim mesmo.
Apagara-se o conflito.
Tudo era agora letargo, abatimento, exaustão...
Por vários dias repousei, até que, ao clarão da verdade, reconheci que as tarefas do industrial e político haviam chegado a termo.
Apesar disso, porém, a certeza da vida que não morre levantara-me a esperança.
Antigas afeições surgiram, amparando-me a luta nova e, desse modo, voltou à condição do servidor anônimo o homem que talvez indebitamente se elevara no mundo aos postos de diretiva”.
(SEGUE).

“INFORMAÇÃO”:
REVISTA ESPÍRITA MENSAL
ANO XXX Nº353
Março 2006
Publicada pelo Grupo Espírita “Casa do Caminho” -
Correspondência:

Cx. Postal: 45.307 - Ag. Vl. Mariana/São Paulo (SP)

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